Formação em educação étnico-racial realizada em 2019 trouxe antirracismo para o currículo da be.Living

Minha pele é meio que marrom branca amarelada rosada
Meus olhos são verdes azulados acinzentados
Mas me disseram que, à noite, eles parecem alaranjados
Meu cabelo é castanho-avermelhado
Mas prata, quando está molhado
E todas as cores que eu sou por dentro, ainda não foram inventadas

Shel Silverstein.

 

Tudo começou em 2018, quando professoras da be.Living sentiram uma necessidade urgente de desenvolver um trabalho mais sólido e profundo com relação à diversidade étnico-racial. Frases como “Minha prima disse que as crianças nascem pretas porque as mães não lavam a barriga na gravidez” revelavam, no dia a dia, como o racismo estrutural pode se manifestar e perpetuar em nossa sociedade, muitas vezes de maneira sutil, por meio da fala inconsciente das crianças. Na ocasião, professoras e direção da escola decidiram olhar com a devida atenção para esta importante questão, dando início a um trabalho consistente que passou a incluir a pauta antirracista no currículo escolar e no aprendizado diário na escola.

 A professora Érica Magosso conta que, na época, juntamente com a professora Luciana Nahas, começou este trabalho com os pequenininhos do Blue, apresentando diferentes tipos de feijão e cuidados com as plantas. Explorou com eles o poema “Colors” de Shel Silverstein, entre outros textos que abordam o tema do respeito ao próximo, como “Hug o’ war” e “Helping”.

Foram trabalhadas, também com os pequenos, as diferenças físicas entre as pessoas nas línguas inglesa e portuguesa. “Começamos observando os cabelos das crianças e das professoras, e fizemos um quadro em que elas mesmas categorizassem seus tipos de cabelo como liso, enrolado, crespo, castanho, além da cor dos olhos. Em relação à pele, ensinamos uma técnica de misturar aquarela e tinta guache: branco + vermelho que é a cor do sangue + amarela + marrom, e repetimos essa técnica em diversas propostas. Testamos nas peles deles, fizemos desenhos de observação com os colegas e pesquisas na escola sobre os diferentes tons de pele. Passamos a usar em nosso vocabulário palavras como “brownish”, “brown”, “curly hair”, “coily hair”. Focamos bastante nas cores que eles viam” – conta a professora. 

Ela lembra que uma mudança importante foi banir da escola o uso do termo “cor de pele”, atribuído principalmente àquele tom de rosa que faz parte da caixa de lápis de cor. “Começamos a falar que aquele era um tipo de rosa e apresentamos para as crianças um conjunto de giz de cera com 24 cores diferentes de tons de pele , desde o mais claro até o mais escuro. Deixamos disponível no canto de Artes e sempre que havia uma intervenção ou proposta de desenho, retomávamos com eles que as pessoas não são da mesma cor. Se eles iam desenhar a família, questionávamos: seu papai, a sua mamãe, irmãos, todos tem a mesma cor ou não? Entre estas cores, quais são as mais parecidas com a pele de cada um deles?”

 

 

Pensando também em valorizar todos que fazem parte da comunidade be.Living, uma das produções finais para a Art Fair 2018 foi pedir para as crianças tirarem fotos de todos os funcionários e fazerem retratos deles. Meninos e meninas retrataram pessoas tão importantes para a escola como a Fernanda do financeiro, a Dona Rosa da cozinha, o Elias e o Cícero, porteiros, a Celene da secretaria, entre outros.  “Uma forma de tornar visíveis e reconhecer aqueles que, normalmente, não são enaltecidos pela nossa sociedade” – explica Erica.

 

 

No ano seguinte, atendendo às aspirações coletivas da equipe pedagógica de abordar as questões étnico-raciais no contexto escolar, a direção da escola proporcionou aos professores uma Formação em Educação Étnico-racial, com a intenção de promover dentro da be.Living um espaço para o diálogo e a reflexão, proporcionando aos educadores um encontro com profissionais que são referências no desenvolvimento de pesquisas a respeito da temática étnico-racial e da produção literária e acadêmica afro-brasileira, indígena e latino-americana.

Para a professora Dedé Ladeira, do Year One, é muito importante este anseio que move o professor a buscar uma transmissão cada vez qualitativa e transformadora: “Sendo uma mulher preta, enxergo os impactos destas ações como muito grandes e positivos. Eu já trabalhei em outras instituições e vejo que os profissionais da be.Living têm uma construção de conhecimento diferenciada. O que é mais bacana é pensar que esta construção de conhecimento, este anseio por este conhecimento partiu da própria equipe de professoras que, a partir da fala de uma professora no ano de 2018, quando eu nem fazia parte da equipe ainda, solicitaram uma formação em Educação Étnico-racial para elas, certas de que sem esta formação seria impossível acontecer qualquer tipo de transmissão qualitativa neste sentido”.

Durante a Formação, toda a equipe revisitou velhas narrativas buscando reconstruir novos significados para a história do Brasil, das colonizações e os impactos que estas relações exercem, ainda hoje, na forma de ensinar e repertoriar as crianças. 

Houve um diálogo sobre a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 que orientam escolas privadas e públicas a incluir em seus currículos e projetos pedagógicos o estudo da presença das culturas de matrizes africana, afro-brasileira e indígena na formação identitária brasileira resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política.

E, sobretudo, foi estimulada a democratização da informação e do conhecimento, no intuito de contribuir com a valorização, fortalecimento e afirmação da identidade étnico-racial de estudantes, professores, gestores e demais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. 

A professora de Cultura Brasileira Mafuane Oliveira, responsável pela curadoria da Formação, conta que, na ocasião, foi realizada uma análise e um mapeamento das práticas pedagógicas realizadas pela escola nos últimos 10 anos. “A partir de todas as discussões, foi possível identificar o que já estava fortalecido no ambiente da be.Living com relação ao trabalho de Educação Étnico-racial, como os projetos “Civil Rights”; “Revolta  dos Malês”, “Projeto Ubuntu”, “Projeto de culturas indígenas”; “Coisas do Mundo”; “Coisas d´Aqui” e todas as questões abordadas nos currículos de Ciências Sociais e História. Foi possível identificar, também, quais eram as fragilidades, como a necessidade de rever o acervo bibliográfico da escola e oportunizar contato com narrativas literárias e históricas diversas que favorecessem o respeito às diferenças de todos os grupos socio-raciais e culturas”.                                    

Ela ajudou a professora Erica a consolidar uma lista de literatura infantil que considerava diferentes faixas etárias e diferentes enredos, com histórias de pessoas, culturas e etnias de outras regiões do mundo, como África, México, Índia, América Latina e afrodescendentes e latinos dos EUA.

“Quando pensamos na partilha de histórias e nas narrativas que circulam em uma sociedade racializada como a nossa, precisamos nos indagar sempre: que tipo de histórias narramos? Com qual enredo?  Com qual frequência? Para quem? Após a Formação em Educação Étnico-racial estas perguntas se tornaram mais recorrentes porque as histórias, assim como as brincadeiras, são muito importantes para o desenvolvimento das nossas crianças. É a partir das brincadeiras e da imaginação, que as crianças começam a experienciar o mundo e a construir sua identidade. Quanto mais diverso for o nosso repertório, mais possibilidades teremos de construir relações sociais saudáveis e respeitosas”, explica Mafu.

A professora Dedé, que está trabalhando o continente africano com crianças de 6 e 7 anos, buscando valorizar a cultura africana, sente que o Brasil – um país de maioria preta, clama por um processo educacional antirracista. “Este momento atual que estamos vivendo está contando pra gente que a gente, como sociedade, está fazendo a coisa ainda muito igual, porque as respostas estão sendo muito iguais. Até quando a gente vai fazer igual pra ter a mesma resposta? Uma resposta diferente da sociedade exige um trabalho escolar diferente para que essas crianças tenham a chance de alterar completamente esta relação racial, que é o que o nosso país precisa. Por isso, todo este trabalho que a escola faz de ajudar a sair de uma fala ingênua que contribui para a normatização do racismo, de olhar para o currículo não apenas como tema para trocar informações com as crianças, mas para refletir com as crianças, é realmente muito importante”.

Na opinião da professora Mafu, manifestações virtuais como a popular hashtag #BlackoutTuesday são importantes, mas uma verdadeira transformação das relações virá através de estudo, informação, do revisitar a história e da mudança de velhos hábitos. “Sobretudo a mudança de nossas ações e posturas diárias, que vão muito além do compartilhamento de notícias ou adesão aos movimentos virtuais. Sigamos com a escuta atenta e com disposição para aprender e transformar o mundo sempre!”.

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